A capa ilustrada trazia pessoas
desesperadas, fugindo de um homem que segurava um carro sobre sua cabeça como
se não fosse nada, em tons vivos de amarelo, azul e vermelho. A data estampada
era junho de 1938. 75 anos atrás. A edição número 1 da revista “Action Comics”,
com a primeira aparição de Superman, hoje vale tanto quanto uma obra de arte –
2,16 milhões num leilão recente. Mas os autores do primeiro super-herói dos
quadrinhos, responsáveis por uma verdadeira revolução editorial, cultural e
capitalista, jamais foram devidamente recompensados por sua criação. E
precisaram lutar muito para deixar o anonimato.
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A capa da revista Action Comics #1
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Quem hoje vê os nomes de Jerry
Siegel e Joe Shuster creditados como criadores do Superman nos quadrinhos
provavelmente não sabe a verdadeira odisseia pela qual os artistas passaram
para serem reconhecidos como tal. Assim como a origem do Superman, a história
da criação do personagem também envolve perdas pessoais e grandes vilões, além
de um perigoso mundo corporativo.
O processo criativo que culminou
na criação do super-herói teve início em 2 de junho de 1932, quando Mitchell
Siegel, pai de Jerry, um imigrante judeu oriundo da Lituania, trabalhava até
tarde em sua loja de roupas, em Cleveland. Três homens entraram no
estabelecimento para roubá-lo. Mitchell, assustado com a situação, acabou tento
um ataque cardíaco que lhe custou a vida.
A experiência de perder o pai
para o crime marcou o jovem Jerry, que viu sua família buscar refúgio da dor na
religião. Assim como Superman, ele se tornou órfão por eventos que fugiam ao
seu controle. Mas isto também fazia parte dos planos de Deus, ele aprendeu.
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Jerry Siegel |
Nos quadrinhos, o bebê Kal-El
perdia pai e mãe numa destruição planetária, um apocalipse divino como o
dilúvio. Enviado numa nave espacial do planeta Krypton, como único sobrevivente
de sua raça, ele chega à Terra onde é adotado por novos pais, que decidem
esconder sua verdadeira identidade, a de futuro salvador da humanidade. Os
traços messiânicos do personagem vinham diretamente da Bíblia, refletindo como
ficção científica a trajetória do profeta Moisés, único bebê sobrevivente de um
massacre ordenado por um faraó egípcio, que é colocado numa canoa, lançado no
rio Nilo e encontrado pela filha do faraó, que decide adotá-lo e criá-lo como
seu próprio filho, escondendo sua identidade de futuro salvador dos judeus.
Não só isso, mas o sufixo “El”
é um dos antigos nomes de Deus encontrados em textos religiosos. Esse sufixo
também é visto nos nomes de grandes profetas, como Samuel e Daniel, e em alguns
anjos, como Michael (Miguel) e Gabriel.
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Joe Shuster |
O próprio Jerry referia-se à
criação do personagem como uma experiência quase sobrenatural. Segundo ele, a
inspiração surgiu numa noite insone de verão. “Eu pulei da cama e comecei a
escrever. Então voltava para a cama e pensava mais sobre aquilo por cerca de
duas horas. Aí eu levantava de novo e escrevia. Foi assim a noite inteira,
sempre com intervalos de duas horas”, contou ele em entrevista posterior. No
dia seguinte, Jerry correu até a casa de seu vizinho e amigo de infância Joe
Shuster, que passava dias inteiros rabiscando desenhos como passatempo. “Nós
trabalhamos naquele sonho o dia inteiro”, disse Siegel.
Jerry e Joe se tornaram amigos
no colégio. Os dois eram garotos tímidos e não muito populares da cidade de
Cleveland, o que refletiu na sua criação de Clark Kent. Eles queriam poder
tirar os óculos que realmente usavam e se tornar outras pessoas. Superman era
bonito, forte e admirado por todos. Ele capturava os bandidos e ladrões da
cidade, sendo capaz, inclusive, de sobreviver a um tiro no peito de ladrões de
lojas – e falar com confiança com as mulheres! Em sua concepção, o personagem
era a personificação de seus sonhos mais íntimos.
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Siegel e Shuster trabalhando nos quadrinhos de Superman |
Criar o personagem não foi o
mais difícil. A dupla logo descobriu que ninguém queria saber de super-heróis.
Foram muitos “nãos” pelo caminho, até chegar na editora de revistas pulp
National Periodicals, que lhes ofereceu o valor de US$ 130 por sua criação. Os
dois aceitaram o cheque, sem saber que, com isso, abriam mão de tudo, enquanto
a National Periodical enriqueceria às suas custas, lançando os primeiros
quadrinhos que a transformariam na poderosa DC Comics.
Quando concordaram em vender a
primeira história do Superman, publicada em 1938, eles aceitaram também vender
os direitos do personagem para sempre. “Nós fomos ingênuos”, disse Shuster
posteriormente. “Nos foi dito que eles cuidariam da gente, e que enquanto
Superman fizesse dinheiro, nós também ganharíamos”, completou.
Por um tempo isso aconteceu
(ainda que em proporções diminutas). Os dois trabalharam na National criando
histórias do personagem. Entretanto, não demorou muito para eles conhecerem a
verdadeira realidade do mundo corporativo.
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Siegel e Shuster em evento para promover
o primeiro filme de Superman, de 1948
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Visando aumentar a popularidade
do personagem em 1941, Siegel apresentou para a National a ideia de fazer uma
série de histórias baseadas na juventude do Superman, intitulada “Superboy”. A
editora recusou a ideia. Jerry então foi convocado para servir na 2ª Guerra
Mundial e quando retornou, descobriu, para sua surpresa, que a editora estava
publicando as histórias do Superboy sem o seu consentimento e, principalmente,
sem lhe pagar nada por isso.
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Superman na TV, interpretado por George Reeves nos anos 1950
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Teve início então o primeiro
dos muitos processos que a dupla abriria contra a editora. A National teve que
lhes pagar US$ 400 mil de indenização (ainda que a maior parte desse valor
tenha sido usado para cobrir as despesas do processo). Mas isso acabou
complicando a relação dos dois com a editora. Não demorou muito para que eles
perdessem os seus empregos e descobrissem que estavam numa lista negra.
Nenhuma editora queria os
criadores de Superman, considerados encrenqueiros por defender seus direitos, e
eles se viram banidos da indústria dos quadrinhos, num ostracismo que perdurou
por décadas – Siegel precisou usar pseudônimo para freelar para a Marvel nos anos
1960.
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Quem cria as histórias de Superman?
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Pouco depois, Joe Shuster
começou a apresentar problemas de visão, e, sem plano de saúde e nem dinheiro
para pagar tratamento, acabou perdendo a visão de um olho (o que também lhe
dificultava para encontrar outro emprego).
Durante esse tempo, a dupla
continuou a entrar na justiça contra a National, pedindo não apenas um retorno
financeiro pelo seu trabalho, como também, e principalmente, o reconhecimento
de que Superman era de fato uma criação de Jerry Siegel e Joe Shuster. O nome
deles não era mencionado em nenhuma revista, nem os leitores casuais tinham
conhecimento de quem tinha criado o Superman, já que as antigas histórias em
quadrinhos não eram assinadas.
----> Os vilões julgam os direitos de Superman
Neal Adams, um dos
artistas mais populares de Batman, conta que certa vez conversou com Shuster
sobre um musical da Broadway baseado no Superman e o desenhista se mostrava
orgulhoso que sua criação atraísse a atenção de tantas celebridades e
personalidades. Porém, quando questionado sobre o que ele tinha achado da peça,
Joe respondeu que não havia assistido. “Eu não tinha condições de pagar; não
tinha dinheiro suficiente”, ele disse.
A miséria levou Jerry Siegel a
procurar trabalho onde quer que lhe empregassem. Conseguiu uma vaga como
carteiro. Eram os anos 1970. Superman ia virar uma superprodução de cinema. A
National também ia mudar de nome. Viraria DC Comics. Muito dinheiro entraria na
empresa com sua associação com a Warner Bros. Mas as notícias positivas se
depararam com um velho carteiro.
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Superman ganha superprodução, estrelada por Christopher Reeve em 1978
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Um antigo funcionário
reconheceu Siegel, quando ele foi entregar uma encomenda no escritório da DC. A
notícia chegou à diretoria da empresa. Ele foi então chamado na sala do
presidente, onde ouviu que seu trabalho era prejudicial à imagem da companhia.
Onde já se viu, o criador do Superman andando por aí entregando pacotes? Jerry
recebeu US$ 100 e foi aconselhado a se despedir do seu atual emprego, com
promessas de que receberia uma ajuda para não precisar mais trabalhar. Uma
esmola.
A DC havia vendido os direitos de
uso do Superman para a Warner pelo valor de US$ 3 milhões, para a realização do
filme de Richard Donner. Siegel e Shuster se revoltaram. Retornaram à justiça
por uma parcela desse valor e pelo reconhecimento de serem, de fato, os
criadores de Superman.
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É um pássaro, é um avião? Siegel e Shuster veem sua criação voar para longe
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Graças à produção do filme, o
caso ganhou muita repercussão na imprensa. Para não prejudicar o lançamento, a
Warner entrou em acordo com a dupla, comprometendo-se a pagar US$ 20 mil por
mês como compensação financeira até o fim de suas vidas, além de fornecer-lhes
um plano de saúde e lhes dar o tão merecido reconhecimento, passando a creditar
Superman, em todas as mídias, como sendo “criado por Jerry Siegel e Joe
Shuster”. A primeira vez que sua autoria finalmente foi reconhecida nos
quadrinhos foi na revista “Superman” #302, com data de agosto de 1976.
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Jerry Siegel e Joe Shuster, reconhecidos ao lado de Superman
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Em 1985, a DC Comics reviu seu
passado e inclui Siegel e Shuster entre os “50 que Tornaram a DC Grande”, uma
publicação que comemorava os 50 anos da editora de quadrinhos. A capa, claro,
trazia Clark Kent. O editor Julius Schwartz chegou a convidar Siegel a escrever
uma história final de Superman, contando como ele via o final do super-herói.
Siegel se recusou a escrever sobre a morte de sua criação.
Mesmo quando questionado sobre
o que achava do tratamento que tinham recebido da National/DC, Shuster mantinha
uma postura elegante. Ele dizia que era difícil se sentir mal, quando sabia que
milhões de crianças estavam lendo as histórias em quadrinhos com o seu
personagem.
Joe Shuster faleceu em 1992,
aos 78 anos, seguido logo depois pelo amigo Jerry Siegel, que morreu em 1996,
aos 81 anos de idade. Os dois entraram para a história dos quadrinhos e da
cultura pop em geral, sendo agora devidamente reconhecidos como os criadores do
Superman. Seus créditos podem ser vistos, inclusive, no novo filme do
super-herói, intitulado “O Homem de Aço”.
Superman
voa ao fundo, em arte que retrata seu desenhista Joe Shuster
1 comentários:
Ora, os caras venderam sua criação para à DC, ou seja, criaram um ''produto'' e venderam-no para uma empresa, logo, deixaram de ter qualquer direito sobre o ''produto''. Eles foram pagos também pelos trabalhos feitos com o ''produto''. Ninguém fez nada de graça, então pra que tanta reclamação? óbvio que era para faturar umas doletas em cima do ''produto'', que não era mais de seus autores. Não defendo grandes empresas, mas foi feito um negócio e portanto deveria ser respeitado.
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